O poder das donas de casa da série coreana Reply, 1988 vem da união inabalável que potencializava a força individual de cada uma.
Começando uma série de comentários sobre a série Responde 1988, exibida pela emissora coreana TVN no ano de 2015, quero falar sobre a peculiar relação entre mulheres, que foi um dos pontos altos da trama.
Mas antes, deixa eu contextualizar para quem não viu (ou viu e não lembra da série).
Responde 1988 (Reply 1988) faz parte de uma sequência de três dramas coreanos históricos em termos de impacto e influência, e que é considerado por muitos como divisor de águas na dramaturgia da onda Hallyu.
Tenho que confessar que a cada um dos longos e movimentados 16 episódios de cerca de uma hora e meia, eu me perguntava:
porque não vi isso antes?
Essa minha dúvida denuncia o peso da hegemonia imperialista nas produções artísticas de toda ordem, que eu sempre rejeitei, como feminista decolonial que sou, não desconsiderando a qualidade euro-estadunidense, mas fazendo questão de buscar países excluídos pela hierarquia geopolítica, sobretudo os não brancos, para apreciar e prestigiar. Eu realmente acredito na solidariedade entre excluídos como ponte para a transformação social, embora me sinta quase única nessa crença.
Bem, voltando a série que desbancou Itaewon Class e se assentou definitivamente no primeiro posto do meu top 5 e de todos os outros tops que virão nesse seguimento.
Dirigida pelo Shin Won Ho e roteirizada pelo Jung Bo Hoon, ambos espetaculares na condução de uma trama tão rica e cheia de detalhes visíveis e “invisíveis”. Mas não dá para deixar de enaltecer a escritora que pensou o emocionante e tão sensível universo de ‘Responde’ (1997, 1994 e 1988).
É importante falar dela, porque as mulheres em ‘Responde 1988’ são retratadas de forma brilhante e respeitosa em suas complexidades. Talvez pelo fato de que a história tem uma leve referência à vida particular da escritora, claramente a empatia é componente da escrita dessa história. Diferentemente da condução ocidental de histórias de família, e eu tomo como exemplo a bem-sucedida “Todo mundo odeia o Cris” onde a Mãe Alfa é retratada pelo viés da critica dissimulada, para traçar um paralelo com a representação das Mães Alfa de Responde 1988, onde não há sobre elas o peso do juízo de valor.
Elas são o que são e são gostadas pelo que são: mães que exercem um poder organizacional absoluto na estrutura da família. Isso é ser Mãe Alfa.
A trama começa nas Olimpíadas de Seul, em 1988 e se estende pelos primeiros anos da década de 90. Esse pano de fundo foi para mim um gatilho de nostalgia, já que minha adolescência foi na década de 80 e as Olimpíadas de Seul foi a primeira vez que soube que esse lado do mundo existia.
A trama entrelaça os acontecimentos políticos da Coreia do Sul com a vida de cinco famílias do bairro de Ssangmun-dong, distrito de Dobong-gu, bairro pobre de uma das áreas menos desenvolvidas de Seul. E não pense que essa informação é irrelevante para a trama. Esse detalhe é fundamental para entender as vidas das cinco famílias e das mães representadas.
A presença dessas mães é definitiva para a estrutura da história, ainda que duas dessas famílias tenham a mãe “oculta”, uma por falecimento e outra pelo trabalho. Vamos falar de todas elas, começando pelas três na linha de frente:
Ra Mi Ran, a mãe do Jung Hwan e do Jung Dong, casada com Kim Sung Kyun. Ela é a mais áspera de todas, leva a família, que viu sua vida mudar da noite para o dia através de um prêmio da loteria que os deixou ricos.
Kim Sun Young, mãe do Sun Woo e da menininha fofa Sung Jin Joo, é jovem e ficou viúva cedo, ficando desamparada, tendo que lidar com a família do falecido marido e as dificuldades financeiras de cuidar sozinha da família. É uma personalidade doce e que mantém um frescor, apesar dos sofrimentos.
E por último a Lee Il Hwa, mãe da protagonista Deok Sun e de mais dois filhos, casada com Sung Dong Il, que viu as dificuldades financeiras se aprofundarem com a falência do marido e as dívidas advindas dessa situação que os obrigou a morar em uma banjiha (semi-porão) e sacrificar os estudos da filha mais velha que sonhava em ser advogada.
A caracterização dessas três ahjummas (mulher coreana de meia idade) é marcada pelo permanente nos cabelos e pelas roupas simplórias que as deixa com uma aparência quase que uniformizada.
O primeiro episódio revela a profundidade dos laços de amizade através delas, que depois de cozinhar o jantar fazem uma troca interminável de comidas entre as famílias. A metáfora da refeição foi tocante para uma pessoa como eu que acredita que nutrição não é apenas sobre alimentos, é também sobre afeição.
As famílias se nutrem física e emocionalmente, suprindo as necessidades mutuamente ao longo de suas vidas compartilhadas. Inclusive, reafirma também a onipresença materna na casa de Taek (Park Bogum) e seu pai, que no vai e vem das trocas de alimentos entre as famílias, assistem à sua mesa que tinha apenas uma sopa de kimchi, sendo preenchida com as iguarias amorosamente enviadas pelas três ahjummas. Ou seja, essas mães nutrem para além de suas famílias.
O feminismo ocidental, especialmente brancocêntrico, tem convertido uma justa crítica ao papel castrador que a maternidade exerce em nossa estrutura patriarcal, em uma sutil demonização da maternidade que camufla o medo que mulheres, principalmente brancas, têm de responsabilizar os homens pelas suas ausências nas funções domésticas.
A maternidade nunca foi e nunca será um peso para as que escolhem ser mãe. O que pesa mesmo na maternidade é o acúmulo imposto de maneira covarde, por homens que se negam a ser pais para além dos registros falsos de redes sociais.
As mães de ‘Responde 1988’ mostram isso claramente. Onde o homem cumpre seu papel de pai, a estrutura familiar é mantida, não pelos papeis estabelecidos, mas pelas relações inteiras e com funções equilibradas que são constituídas.
Por isso digo que em ‘Responde 1988’, as mães são Alfa. Suas mulheridades não são negligenciadas a custa de sacrifícios solitários feitos em nome da família. Ao contrário, há um equilíbrio que permite a amizade sólida e altamente nutritiva entre as três, que trocam experiências, bebem, choram e riem, dividem angústias, sonhos e anseios, se cuidam mutuamente e nunca, em nenhum momento se julgam ou maldizem uma a outra. Inclusive sobra disposição para exercitar a empatia com as mães ausentes.
É a verdadeira expressão da sororidade vista sob o viés das mulheres maduras e que estão completamente distante dos “revolucionismos” academicistas do feminismo eurocêntrico. Encontramos isso em muitas relações entre mulheres nas periferias e nos espaços onde a pobreza torna as vivências mais complexas.
Interessante é que essas mulheres-mães alfa, não são iguais para além dos cabelos permanentados e das roupas simplórias, mas se relacionam de maneira acolhedora com as diferenças entre elas.
Há momentos lindos, como quando uma delas enfrenta a depressão e outros desconfortos causados pela menopausa, quando uma delas está em um momento extremamente angustiante com suspeita de um câncer ou quando a mais jovem acaba encontrando um novo amor. Em nenhum momento da trama são tratadas como pobres sofredoras donas de casas e são fortes o bastante para assumir um poder feminino que vêm da autonomia que cada, a seu modo, uma vive.
É importante garantir que as múltiplas possibilidade de existência e a pluralidade que compõe o universo humano possa se manifestar sem ser perseguido sob a falsa premissa da “liberdade feminina” que certo feminino burguês preconiza como empoderamento, mas na verdade é tão castrador quanto à estrutura patriarcal. Vejo muito isso na crítica às auto intituladas “mulheres troféus” que proliferam nas redes sociais. O problema não é a escolha em si, isso é um direito. A questão é garantir que isso não seja o recuo a um modelo de vivência feminina estritamente atrelado à dominação, conscientizando sobre os limites que um “troféu” representa.
As Ahjummas de Reply 1988, mesmo a que ascendeu economicamente tornando-se rica, mantém-se autônoma e satisfeita em sua posição de mãe alfa e nada submissa, nem ao marido e nem a sociedade que a cerca.
Já o mesmo não se pode dizer da outra mãe onipresente, que por trabalhar fora tem pouquíssimo tempo visível na trama, mas está sempre subentendida através da carência do filho e da solidão do marido.
Entendo essa personagem como um recado a todas as sociedades que colocam a maternidade como compulsória, de que tolher a liberdade da mulher através da maternidade é garantir a infelicidade de todos os membros.
Poderia escrever um livro sobre o poder feminino apresentado de maneira nada óbvia através da maternidade que Responde 1988 traz como ponto alto. Mas por hora deixo esses elementos descritos acima como sementes para reflexões mais aprofundadas e que fazem contraponto ao atual status de discussão feminista sobre maternidade.
Ser mãe (ou não ser) é um poder imensurável nas mãos de mulheres que entendem como viver isso de maneira realista. E nesse sentido o exemplo está fora do ocidente e vale a pena conferir.
*essa série está disponível no catálogo da netflix e nos fansubs do telegram
*fotos | IMDB
Que recomendação maravilhosa! É difícil encontrar contrapontos no contexto atual, assim como conversar sobre o desejo de ser mãe no grupo de amigas feministas que inclui mães esmagadas pelo sistema. O fato de ser uma série asiática me anima ainda mais, muito obrigada!
Esses dias estava rodando rodando os streamings atrás de uma série boa.
vou começar a ver essa no final de semana.
Obrigada pela indicação e texto instigante.
um beijo