Já dizia o saudoso e naturalmente poético músico e compositor Cartola:
O mundo é um moinho
vai triturar teus sonhos tão mesquinhos.
vai reduzir as ilusões a pó.
Mais precisamente, o mundo é um emaranhado de nós feitos por narrativas duvidosas e autocentradas, pautando existências semi-conscientes, robotizadas pelas inúmeras formas e meios de manipulações existentes e reverberando como um eco eterno e coletivo, as piores tendências da alma humana, naturalizadas ao longo do tempo.
Tudo isso com cada vez menos espaço para que esses nós se desfaçam e os robotizados despertem desse persistente sono intranquilo.
Assim sendo, somos arrastados sem muitas opções, para problemas diversos, alguns ricos em complexidade e outros em profundidade. Alguns podemos resolver com as bagagens que acumulamos ao longo da vida, outros vêm justamente para nos dar novos aprendizados.
Alguns problemas exigem muito de nós e outros exigem que sejamos exigentes uns com os outros. Há problemas que independem da nossa ação ou inteligência e outros que só o tempo resolve. Alguns doem, outros desanimam, outros nos desperta a raiva. Há os que nem sabemos quando estamos diante dele.
Enfim, parafraseando mais um dos poetas naturais da música, Gilberto Gil, problema sempre há de pintar por aí.
Poucas coisas são tão certas e tão democráticas quanto os problemas: tem em tudo e para todos, de todos os tipos e jeitos e em todos os lugares onde há existência de vida humana.
Mas, nem todos conseguem converter problemas em oportunidades ou ao menos se permitir aproveitar o único benefício que um problema poderia de alguma forma trazer oculto em si: a possibilidade de expandir nossos limites e capacidades.
Todo e qualquer problema tem algo a nos ensinar sobre nossa força interior e tem mecanismos para nos ajudar a lembrar de que somos humanos.
Contudo, problemas também podem deixar marcas, sequelas, resquícios ou criar dinâmicas internas que pedem atenção especial, sejam elas superficiais ou mais profundas.
Uma dessas dinâmicas internas é o que bell hooks, teórica e feminista afroamericana, chamou de “identidade vitimada”, mas que pejorativamente chamamos de vitimismo.
Confesso que prefiro o termo usado por hooks, pois além de menos estigmatizante é mais condizente com os mecanismos internos que levam a isso. Explico:
Identidade vem do latim IDENTITAS, que significa “a mesma coisa” ou de IDEM, que significa “o mesmo”, e do sufixo “-dade”, que indica um estado ou qualidade).
Dessa forma, a etimologia desta palavra conduz à sua aplicação como qualificadora daquilo que é idêntico, sendo, portanto, identificadora de algo que permanece.
O que permanece aqui? O estado dE vítima.
Quer dizer, esse termo usado por hooks nos remete a uma identificação, consciente ou não, com a condição de vítima.
Ser vítima é uma condição, uma vez que é involuntário e momentâneo, pois denota uma circunstância. Ninguém escolhe, conscientemente, ser vítima em uma situação e, seja qual for a circunstância, ela tende a ter término.
Só que aí, quando a pessoa se livra da condição que a vitima, pode aparecer um prolongamento mental da situação. Ou seja, a pessoa pode por diversas razões desenvolver uma identificação com a condição de vítima.
Muitas dessas razões podem ser mecanismos de defesa do ego, a pessoa cria uma identificação para se proteger, afinal, ‘ninguém pode me tornar aquilo que eu já sou’.
Mas há também aquelas pessoas que usam a identidade vitimada para suprir carências ou para fins de manipulação dos que a cercam.
Pessoas controladoras, por exemplo, podem saciar sua necessidade de controlar a tudo e todos se mantendo em uma condição de vítima, mesmo não sofrendo nada ou já tendo superado os sofrimentos pelos quais passou.
Toda vítima, em maior ou menor escala, pode despertar sentimentos nobres como solidariedade, simpatia ou empatia, compaixão e até carinho ou ternura, mas, principalmente, atenção.
Instintivamente, nosso lado animal, nos inclina em maior ou menor grau, a proteger os que sentimos serem mais fracos ou mais vulneráveis. Vítima é sempre uma situação de vulnerabilidade.
Há também os que pisam nas areias movediças da vaidade e acabam por vestir a identidade de vítima como consequência de uma imagem de superioridade que criaram para si e que os convenceu de que são bons demais para ter experiências negativas com problemas mundanos, comuns.
Há também algo que considero inerente a alma humana e que pode estar na raiz de algumas formações de identidade de vítima, que é a negação de nossa falibilidade, de nossa inesgotável capacidade de errar, de fracassar, seja lá por qual motivo seja.
É tão comum ouvir pessoas dizendo aquele velho ditado que já está mais para ladainha de tanto que é repetido:
errar é humano
Mas peraí…se errar é humano, porque sempre nos colocamos como infalíveis? Porque sempre somos tão dramáticos com nossos erros e terrivelmente severos diante dos erros alheios?
Falamos que errar é humano, mas nossa vaidade denúncia que pensamos estar acima dessa condição humana, afinal, acreditamos que jamais estamos errados.
Ou não?
E é essa presunção oculta, essa arrogância silenciosa, essa soberba dissimulada que aduba o solo onde a autopiedade vai brotar e se desenvolver através da identidade de vítima.
Passamos a sentir pena de nós mesmos e cobrar inconscientemente uma consideração do outro, não porque humildemente nos vemos necessitando dela e sim porque acreditamos que somos bons demais para não recebê-la.
Podemos pensar na identidade de vítima como uma semente que, uma vez plantada, vai se desenvolvendo até se transformar em uma árvore com raízes tão profundas que mantém qualquer pessoal imóvel, mas que também tem galhos e frutos com alto potencial tóxico.
Um deles é o ressentimento. Outro é a inveja. Temos também toda espécie de raivas e ranços, dos mais silenciosos e discretos aos mais barulhentos e violentos, contra os que não reconhecem seu estado de “merecedor supremo” de todas as benesses e honrarias que por alguma razão não lhes foi entregue.
Todos esses e outros frutos que surgem dessa história são além de tóxicos, extremamente amargos, envenenam as relações e a vida, tornando as atitudes das pessoas bastante corrosivas.
Entretanto, independente dos caminhos emocionais que levam uma pessoa a adotar (ou vestir, como dizia bell hooks) uma identidade de vítima, isso pode ter repercussões profundas, perpetuando um ciclos de negatividade e desamparo.
A identidade de vítima sinaliza que a pessoa pode ter internalizado demais os sofrimentos, passando a ver a si mesma como confinada eternamente nessa condição e pleiteando de maneira inconsciente o direito à compensação por sua dor.
Mesmo nos casos onde a identidade de vítima seja uma forma de manipulação, ela não apenas corroi a agência pessoal, como também dificulta todo e qualquer processo de cura, impedindo que a pessoa busque o seu próprio bem-estar e enxergue a vida de maneira mais positiva.
A identidade de vítima se manifesta através da autocomiseração, autopiedade ou como "pena de si mesmo", mas esses sentimentos são quase sempre ocultos, nem sempre a pessoa consegue identificar e eles podem estar manifestados de maneira indireta.
O fato é que há muito mais pessoas presas nesse tipo de dinâmica emocional do que supomos e essas pessoas tendem a não conseguir superar os caminhos que as levaram até esse ponto, perpetuando em si mesmas muitas angústias e ansiedades, se lançando a uma atitude de autoproteção preocupante, e em certos casos repelente de novas aproximações, além de buscar sem perceber situações que justificam a sua permanência na condição de vítima.
Muitos de nós, humanos, demasiado humanos, ao não perceber que a identidade de vítima pode se converter em sentimento ou mentalidade, acaba permitindo sem perceber que ela alimente um padrão de comportamento altamente destrutivo e gradualmente paralisante, que também prejudica o desenvolvimento do que temos de melhor para oferecer a nós mesmos e ao mundo.
Sentir pena de si mesmo, embora pareça algo tolo, e para alguns até improvável, esconde lados mais obscuros de nós mesmos, como a recusa em rever crenças e certezas que motivam escolhas equivocadas e que geram ou nos colocam em problemas que talvez, não precisamos vivenciar ou que só nos leva a desgastes improdutivos.
Em outras palavras, se manter nesse lugar de vítima, ainda que tenha sido colocado aí de maneira involuntária, impede algo fundamental para o desenvolvimento da maturidade: a ação de se responsabilizar por si mesmo!
Evidentemente, em muitas situações da vida somos vítimas das escolhas e decisões alheias ou dos moinhos que formam o mundo em que vivemos. Mas é sempre prudente se questionar como chegamos nessas situações e, principalmente, o que podemos fazer para sair delas. Desse questionamento surge a chance de reconhecer atitudes inconscientes que nos levam para caminhos suspeitos ou perigosos e, conseguimos a partir disso, nos comprometer com mudanças internas que tornam nosso contato inevitável com as turbulências desse mundo, muito mais lúcidos, com escolhas menos nocivas e mais autônomas.
Sem nos responsabilizar pela parte que nos cabe nas mais variadas situações e relações, não nos aprofundamos nas dinâmicas criadas e vividas dentro delas e nosso poder pessoal se dissolve, impactando nossa agência negativamente.
A identidade de vítima também pode se formar na dor de se perceber imperfeito, de constatar que estamos sujeitos às dinâmicas imprevisíveis da vida, do mundo, e de que não sabemos lidar com o fato de que nem tudo é sobre nós e sobre nossas escolhas.
Do confronto entre a realidade e nossa crença de que podemos controlar tudo e todos que nos cercam, também pode nascer a identidade de vítima. Muitos de nós apresenta um comportamento altamente controlador e impositivo, seja por insegurança ou medo do inevitável, do desconhecido. E esse comportamento só pode resultar em dor, além de potencializar os erros e nos tornar viciados em lamber as próprias feridas, um comportamento característico da identidade de vítima.
Você se responsabiliza ou se culpa?
Se você se responsabiliza, você se respeita.
Se você se culpa, alimenta sua vaidade, sua imaturidade e se torna cada vez mais incapaz de entender que suas escolhas e atitudes são passíveis de erro e que isso não é sobre você em si, mas sobre seu processo de crescimento interior. A culpa é uma das raízes da identidade de vítima.
Não tenha pena de você independente do que você fez ou do que te fizeram. No lugar disso tenha compaixão.
Não permite que sofrimentos internalizados te prendam nesse lugar de vítima e acabe com sua autoestima, minando sua autonomia e perpetuando um estado de vulnerabilidade, e nem se deixe colocar como vítima das circunstâncias que os seus erros ou os erros do mundo criam em sua vida pessoal ou coletiva.
Se perdoe e se comprometa com o entendimento do que te levou a agir dessa forma. Se responsabilize pela mudança de atitude em uma próxima oportunidade. E esteja em paz com você.
Me identifiquei tanto tanto! (Bem mais do que eu gostaria 💔)